A CLÁUSULA PRINCIPIOLÓGICA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Ricardo Maurício Freire Soares
Doutorando em Direito Público (UFBA). Mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA). Professor da Faculdade de Direito da UFBA, da Faculdade Baiana de Direito e do Curso Juspodivm. Professor-visitante da Università degli Studi di Roma. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-Ba. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br
Sumário: 1. A cláusula principiológica do devido processo legal: significado e origem histórica. 2. A cláusula principiológica do devido processo legal em sentido formal: garantias processuais. 3. A cláusula principiológica do devido processo legal em sentido substancial: ponderação principiológica e o postulado da razoabilidade/proporcionalidade. 4. As funções e modalidades de eficácia da cláusula principiológica do devido processo legal. Conclusão. Referências.
1. A CLÁUSULA PRINCIPIOLÓGICA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL: SIGNIFICADO E ORIGEM HISTÓRICA
O devido processo legal pode ser considerado uma cláusula geral principiológica, prevista pela Constituição, irradiando-se para a disciplina de todas as modalidades de processo (jurisdicional, legislativo, administrativo, negocial), como modelo normativo de inegável inspiração pós-positivista. O princípio do devido processo legal encontra-se consagrado na Carta Magna de 1988, insculpido no artigo 5º, inciso LIV, ao estabelecer que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Conforme acentua Rui Portanova (1997, p. 145), o devido processo legal é uma garantia da cidadania, constitucionalmente prevista em benefício de todos os cidadãos, assegurando tanto o exercício do direito de acesso ao Poder Judiciário, com as garantias processuais, como o desenvolvimento legítimo do processo de acordo com normas previamente estabelecidas. Segundo o princípio do devido processo legal, não basta que o membro da coletividade tenha direito ao processo, tornando-se também inafastável a sua absoluta regularidade formal e material, com efetividade e legitimidade.
Historicamente, a cláusula geral principiológica do devido processo legal, como dos corolários do princípio da legalidade, surgiu no ordenamento jurídico inglês, sob a locução law of the land, fruto do documento imposto pelos barões ingleses ao Rei João Sem Terra. Essa garantia vigorou na antiga Inglaterra, com um sentido formal, sendo posteriormente incorporada no constitucionalismo dos Estados Unidos.
Os primeiros julgados da Suprema Corte americana, que deram aplicação ao preceito do devido processo legal, fizeram-no, portanto, sob um enfoque estritamente procedimentalista, descartando as tentativas de se emprestar a essa garantia constitucional um sentido substantivo. Essa vertente de entendimento sufragava a tese de que a 14ª Emenda Constitucional buscava estender a todas as pessoas nascidas nos Estados Unidos, independentemente de cor ou origem, os direitos e imunidades concernentes à condição de cidadão, dentre eles a plenitude da capacidade civil, a investidura para requerer em juízo e o direito a um processo regular e justo.
Em solo norte-americano, a cláusula geral principiológica do devido processo legal passa a ser aplicada em sua dimensão substancial com o advento do leading case Calder vs. Bull, de 1798, que constitui o marco inicial da doutrina do judicial review submetido à apreciação da Suprema Corte norte-americana, suscitando o exaqme dos limites do poder governamental.
No transcurso desta evolução histórica, duas modalidades de devido processo legal foram, portanto, sedimentadas no ocidente: procedural due process e substantive due process.
Na primeira acepção, o devido processo legal significa o conjunto de garantias de ordem constitucional, que de um lado asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, legitimam a própria função jurisdicional. Verifica-se, apenas, se o procedimento empregado por aqueles que estão incumbidos da aplicação das normas jurídicas viola o devido processo legal, sem se cogitar da substância do ato.
Na segunda significação, o devido processo legal refere-se à maneira pela qual a lei, o regulamento, o ato administrativo ou a decisão judicial são aplicados, de molde a otimizar a busca de uma opção hermenêutica legítima e efetiva, com base nos resultados da ponderação principiológica e do uso do postulado da razoabilidade/proporcionalidade.
Conforme já referido, o devido processo legal em sua acepção formal ou procedimental (procedural due process) designa o conjunto de garantias de ordem constitucional, que de um lado asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, legitimam a própria função jurisdicional. Para que seja efetivada a cláusula do due process of law em seu sentido formal, certas garantias devem ser postas pelo Estado em favor dos cidadãos, geralmente enunciadas na forma de princípios jurídicos.
Como ressalta Nelson Nery Júnior (1996, p. 29), do reconhecimento do devido processo legal, já defluirá toda a principiologia que garante um processo justo, daí resultando a institucionalização de inúmeras garantias para a cidadania: a) direito a citação e ao conhecimento do teor da acusação; b) direito a um rápido e público julgamento; c)direito ao arrolamento de testemunhas e à notificação das mesmas par comparecimento perante os tribunais; d) direito ao procedimento contraditório; e) direito de não ser processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis ex post facto; f) direito à plena igualdade entre acusação e defesa; g) direito contra medidas ilegais de busca e apreensão; h) direito de não ser acusado nem condenado com base em provas ilegalmente obtidas; i) direito à assistência judiciária, inclusive gratuita; j) privilégio contra a auto-incriminação; k) a proteção à igualdade entre as partes, o direito de ação e o direito de defesa e o contraditório.
Para os limites do presente trabalho, cumpre examinar as projeções mais relevantes do devido processo legal em sentido formal, como garantias processuais que, na condição de subprincípios, densificam/concretizam o macroprincípio do procedural due process of law. Sendo assim, merecem destaque as seguintes garantias: isonomia; contraditório e ampla defesa; a previsão do juiz natural; a inafastabilidade da jurisdição; a publicidade dos atos processuais; a motivação das decisões judiciais; o duplo grau de jurisdição; a proibição do uso de prova ilícita; e a duração razoável do processo.
O princípio da isonomia das partes processuais decorre da garantia constitucional que dispensa a todos os cidadãos igualdade de tratamento perante a ordem jurídica. Com efeito, o caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988 prescreve que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do seu direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
O princípio da isonomia perpassa as diversas fases da relação processual, para que ambas as partes da lide possam desfrutar de iguais faculdades e submeter-se aos mesmos ônus e deveres. Conforme se depreende do art. 125, inciso I, do Código de Processo Civil, a igualdade de tratamento das partes é um dever do juiz e não uma faculdade. As partes e os seus procuradores merecem tratamento equânime, com ampla possibilidade de fazer valer em juízo as suas alegações.
A noção de tratamento isonômico às partes significa, entretanto, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades. Busca-se, assim, a denominada igualdade real ou substancial, de molde a proporcionar as mesmas oportunidades às partes processuais. Isto se manifesta porque a igualdade jurídica não pode eliminar a desigualdade sócio-econômica.
Comentando o tema, Barbosa Moreira (1985, p. 141) assinala que existem diversos institutos no Código de Processo Civil voltados à isonomia dos pólos processuais. Um dos exemplos são as regras concernentes à exceção de suspeição e incompetência do juiz, a fim de evitar que um dos litigantes, presumivelmente, tenha favorecimento por parte do órgão jurisdicional.
O princípio da isonomia processual não faculta ao magistrado igualar as partes quando a própria lei estabelece a desigualdade, em nome da supremacia do interesse público. No que tange às desigualdades criadas pela própria lei, pode-se mencionar o tratamento conferido aos pólos processuais de uma relação consumerista. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 4º, reconhece a vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor, estabelecendo a inversão do ônus da prova, face à maior possibilidade do fornecedor produzir meios probantes. Merecem também registro as prerrogativas do Ministério Público e da Fazenda Pública no tocante aos prazos processuais, conforme disposto no artigo 188 do Código de Processo Civil.
Por sua vez, o princípio do contraditório e da ampla defesa está positivado expressamente na Constituição Federal de 1988, conforme dispõe o artigo 5º, inciso LV, in verbis: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
As partes devem ser postas em condição de expor ao juiz as suas razões antes da prolatação da decisão judicial. Os pólos processuais devem poder desenvolver seus argumentos de modo pleno e sem limitações arbitrárias. Dinamizada a parcialidade das partes do processo, uma apresentando a tese e a outra oferecendo a antítese, o magistrado profere a sua decisão, cristalizando a síntese de uma bipolaridade dialética que envolve as interações dos sujeitos processuais.
Neste sentido, é imprescindível que se conheça os atos praticados pela parte contrária e pelo juiz, para que se possa estabelecer o contraditório e a ampla defesa. Sendo assim, este princípio processual se estriba em dois elementos: a informação à parte contrária e a possibilidade de resposta à pretensão deduzida.
De outro lado, o princípio do juiz natural pode ser encontrado na Carta Magna, art. 5º incisos XXXVII (não haverá juízo ou tribunal de exceção) e LIII (ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente). A idéia do Juiz natural é um dos corolários do próprio princípio da reserva legal, com assento constitucional no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Carta Magna de 1988.
Sobre o princípio em comento, leciona Alexandre de Moraes Alexandre de Moraes (2006, p. 76) que a imparcialidade do Judiciário e a segurança do povo contra o arbítrio estatal encontram no princípio do juiz natural uma de suas garantias indispensáveis. O referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se, não só a criação de tribunais ou juízos de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e a imparcialidade do órgão julgador.
Com efeito, o princípio do juiz natural visa a assegurar que o sujeito, ao praticar um ato jurídico, ou mesmo contrário ao direito, tenha prévio conhecimento de qual será o órgão competente para apreciar eventuais conflitos de interesses. O juiz natural é, portanto, o magistrado legalmente devido, competente e imparcial.
Neste primeiro aspecto, o princípio do juiz natural protege a coletividade contra a criação de tribunais que não são investidos constitucionalmente para julgar, especialmente no que concerne a fatos especiais ou pessoas determinadas, sob pena de realizar-se julgamentos eivados de convicções político-ideológicas, com o comprometimento da imparcialidade judicial e da isonomia das partes.
De outro lado, o segundo desdobramento do princípio do juiz natural prevê a garantia da existência de autoridades competentes, impondo a a exigência de órgão jurisdicional competente cuja competência esteja previamente delimitada pela legislação em vigor. Trata-se de uma garantia ampla, porque se veda tanto o processar como o sentenciar. Com isso, exprime-se a garantia constitucional de que os jurisdicionados serão processados e julgados por alguém legitimamente integrante do Poder Judiciário, com base na Carta Magna e nas leis infraconstitucionais.
Por seu turno, o princípio da inafastabilidade da jurisdição encontra abrigo no art. 5º, inciso XXXV, da CF/88. A Carta Magna prescreve que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Em que pese o destinatário principal desta norma seja o legislador, o comando constitucional atinge toda comunidade jurídica. Não pode o legislador, qualquer agente público ou mesmo o particular impedir que o jurisdicionado procure o juízo para deduzir uma pretensão. Com base neste princípio constitucional do processo, é garantida a necessária tutela estatal aos conflitos ocorrentes na sociedade, mediante o exercício do direito de ação.
Neste compasso, a invocação da tutela jurisdicional, preconizada na Constituição Federal, deve efetivar-se pela ação do interessado que, exercendo o direito à jurisdição, cuide de preservar, pelo reconhecimento (processo de conhecimento), pela satisfação (processo de execução) ou pela asseguração (processo cautelar), direito subjetivo material violado ou ameaçado de violação.
A seu turno, o princípio da publicidade encontra-se referido em diversos preceitos da Carta Magna. Cumpre citar art. 5º, inciso LX, segundo o qual a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem, bem como o art. 93, inciso IX, in verbis: todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente estes. Tal norma deve ser lida com a orientação supletiva do artigo 131 do Código de Processo Civil, ao preceituar que o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
Tratando do tema em comento, Tucci e Cruz e Tucci (1989, p.72) salientam que a garantia da publicidade não se traduz na exigência da efetiva presença do público ou dos meios de comunicação aos atos processuais, não obstante reclame mais do que uma simples potencialidade abstrata. A publicidade é garantia para o povo de uma justiça justa, que nada tem a ocultar e, por outro lado, é também garantia para a própria magistratura diante do povo, pois agindo publicamente, permite o controle democrático de sua atuação.
A publicidade dos atos processuais resta elencada como direito fundamental do cidadão, mas a própria Constituição Federal faz referência aos casos em que a lei admitirá o sigilo e a realização do ato em segredo de justiça. A lei cataloga os casos, nada impedindo que o juiz confira a outros, em virtude de interesse público, processamento em segredo de justiça, hipótese em que deverá justificar a tomada desta decisão.
Merece também registro o princípio da motivação das decisões, previsto no mencionado artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988. É importante mencionar que o texto constitucional não apenas exige a fundamentação das decisões proferidas pelos órgãos do Poder Judiciário, como as declara nulas se desatenderem a esse comando.
Conforme leciona Angélica Alvim (1994, p. 35), motivar todas as decisões significa fundamentá-las, explicar as razões de fato e de direito que implicam no convencimento do juiz, devendo esta fundamentação ser substancial e não meramente formal, porque embasada em argumentos jurídicos sólidos e lastreados nos fatos sociais.
Garante o princípio da motivação das decisões a inviolabilidade dos direitos em face do arbítrio, visto que os órgãos jurisdicionais têm de motivar, sob pena de nulidade, o dispositivo contido no ato decisório.
Neste sentido, Teresa Arruda Alvim (1993, p. 70) sustenta que a decisão judicial não pode ser confundida como um ato de imposição pura e imotivada de vontade. Sendo assim, motivar todas as decisões significa fundamentá-las, explicar as razões de fato e de direito que implicam no convencimento do juiz, devendo esta fundamentação ser substancial e não meramente formal. Daí a necessidade de que venham expressos seus motivos, sendo equivalentes, nesta perspectiva, a fundamentação deficiente e a falta de fundamentação.
O dever de motivação guarda correspondência com o sistema da livre convicção, visto que quanto maior for o poder discricionário do magistrado, mais importante será a necessidade de fundamentar sua decisão. A falta ou deficiência da motivação produz um vício insanável, cujo reconhecimento pode dar-se em qualquer grau de jurisdição e independentemente de provocação da parte.
No sistema da persuasão racional ou do livre convencimento, também conhecido como sistema da livre convicção ou da verdade real, o juiz forma livremente o seu convencimento, porém dentro de critérios racionais, lógico-jurídicos preestabelecidos, os quais devem ser expressamente indicados.
Nesse sentido, sustenta Antônio Carlos Cintra (1997, p. 356) que a persuasão racional, no sistema do devido processo legal, implica no convencimento formado com liberdade intelectual, baseado na prova constante dos autos e acompanhado do dever de fornecer a motivação dos caminhos do raciocínio que conduziram o julgador à conclusão.
Trata-se, na verdade, de um sistema misto no qual o órgão julgador não fica adstrito a critérios valorativos prefixados em lei, tendo liberdade para aceitar e valorar a prova, desde que, ao final, fundamente sua convicção, dando as razões do convencimento com base no que foi colhido nos autos.
Neste sentido, a função jurisdicional deve implicar na comprovação, cuidadosamente estruturada, da incidência de norma abstrata ao caso concreto. Seu espaço de discricionariedade no exercício de tal função está demarcado pela moldura imposta pelo legislador constitucional e infraconstitucional, não cabendo ao julgador ampliar, demasiadamente, o alcance de tal moldura, impulsionado por motivações estranhas à ordem jurídica.
Deste modo, a motivação da decisão preserva os valores de segurança jurídica e legitimidade das decisões, exigências caras ao Estado Democrático de Direito, conferindo aos cidadãos a garantia de que serão julgados conforme o devido processo legal e que não estarão sujeitos ao voluntarismo do Poder Judiciário
Ressalte-se ainda o princípio do duplo grau de jurisdição. A doutrina diverge em considerar o duplo grau de jurisdição como um princípio de processo inserido na Constituição Federal de 1988, já que inexiste a sua previsão expressa no texto constitucional. De outro lado, existem autores que admitem o duplo grau de jurisdição, como princípio processual implícito. Estes últimos embasam o posicionamento, considerando a competência recursal estabelecida pela própria Carta Magna. Dentre outros preceitos, é possível citar: o art. 5º, inciso LV, in verbis, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; art. 102, incisos II e III, segundo o qual compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe julgar, em recurso ordinário e mediante recurso extraordinário; e o art. 105, incisos II e III, rezando que compete ao Superior Tribunal de Justiça julgar, em recurso ordinário e em recurso especial.
Todo ato decisório do julgador, capaz de prejudicar um direito da parte, deve ser recorrível, como meio de evitar e reformar os erros inerentes aos julgamentos humanos, satisfazendo, igualmente, o sentimento de inconformismo contra decisões desfavoráveis. O princípio do duplo grau de jurisdição assevera, pois, ao litigante vencido, total ou parcialmente, o direito de submeter a matéria decidida a uma nova apreciação jurisdicional, no mesmo processo, desde que atendidos determinados pressupostos ou requisitos previstos em lei.
Por sua vez, não deve ser olvidado o princípio da proibição de prova ilícita. A Constituição Federal de 1988 prevê a vedação da utilização de provas ilícitas no processo civil ou penal, no artigo 5º, inciso LVI, segundo o qual são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Às partes cabe o ônus de produzir as provas, na exata medida dos interesses que estejam a defender na causa; é precisamente com vistas ao exercício dessa atividade que assume especial importância o princípio da licitude dos meios de prova.
Desdobrando o preceito constitucional, o artigo 332 do Código de Processo Civil menciona qual o tipo de prova admitido no processo, in verbis: todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação e a defesa.
Discorrendo sobre o assunto, Djanira Maria de Sá (1998, p. 27) ensina que por prova lícita deve entender-se aquela derivada de um ato que esteja em consonância com o direito ou decorrente da forma legítima pela qual é produzida. Deste modo, o magistrado não pode levar em consideração uma prova ilícita, seja nas sentenças/ acórdãos, seja nos despachos ou no momento de inquirir testemunhas, embora convenha deixá-la nos autos, a fim de que, a todo momento, a parte processual prejudicada possa tomá-la em consideração para instaurar o contraditório e verificar o convencimento do juiz.
Acrescente-se ainda o princípio da duração razoável do processo, ao conferir o direito fundamental a um processo sem dilações indevidas. Ao artigo 5º da Constituição Federal de 1988, foi agregado o inciso LXXVIII, com o seguinte teor: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".
A demora na tramitação dos processos sempre foi identificada como um dos pontos cruciais da denominada crise de jurisdição, verificada na segunda metade do século vinte. Múltiplas causas conduziram a um quadro desalentador, no qual a duração da relação processual atingia, em regra, vários anos, gerando a frustração das expectativas sociais e comprometendo a legitimidade do processo como veículo de realização da justiça.
Tanto é assim que o artigo 5º, inciso XXXV da Carta Magna, ao condensar a fórmula do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, passou a ser interpretado não somente como a garantia do acesso ao Poder Judiciário (mero direito ao processo), mas, na esteira da doutrina e da jurisprudência mais avançadas, transformou-se em verdadeira cláusula de utilidade da jurisdição. Sob esta perspectiva, o mencionado princípio passou a resguardar tanto um direito à ação e ao processo enquanto veículo da tutela jurisdicional, quanto uma tutela jurisdicional potencialmente útil e eficaz.
Dentre os fatores de mensuração da eficácia da tutela jurisdicional, encontra-se a celeridade com que ela é prestada, porquanto a demanda judicial coloca, geralmente, em suspensão a relação jurídica que é objeto da pretensão, impedindo o imediato gozo do direito ou resolução da lide. Sendo assim, a tutela jurisdicional prestada de forma eficiente é aquela realizada em prazo razoável.
Ao vislumbrar-se o princípio da eficiência (artigo 37, caput, da CF/88), poder-se-ia já conceber o postulado da tutela jurisdicional eficiente. É que a atividade jurisdicional também figura como uma atividade do Estado (administração da justiça), levada a efeito por um segmento do aparato estatal, que compreende não só o Poder Judiciário, mas também outras instituições como o Ministério Público, a Defensoria Pública e as respectivas Procuradorias. A prestação jurisdicional, por outro lado, não abarca exclusivamente a atividade do Juiz, mas abrange as atividades administrativas desenvolvidas no âmbito do próprio Poder Judiciário e destas outras instituições. O direito/garantia à celeridade processual já decorria de uma interpretação lógica do princípio da eficiência.
Não se pode estabelecer um parâmetro objetivo para quantificar o tempo requerido pelo juiz para decidir um feito. É que o magistrado deve estar convicto para decidir, não se sujeitando esta convicção a prazos rígidos. Há ainda que se considerar o excesso de serviço, pelo grande volume de processos que acomete a atuação do magistrado. Entretanto, os demais fatores que integram a formação do tempo do processo podem ser medidos com a régua do princípio da eficiência, diante do parâmetro de razoabilidade, aplicável, de forma direta ou indireta, às funções do Estado.
Neste sentido, embora, a rigor, o direito a uma jurisdição eficaz, e, portanto, célere, já estivesse assegurado na própria Constituição de 1988, antes mesmo da Emenda Constitucional nº 45/04, não se deve reduzir o seu valor, cujo mérito foi explicitar este direito e garantia fundamental. Ademais, a Emenda Constitucional nº 45/04 promoveu a inclusão da exigência de celeridade no âmbito do processo administrativo, o que não estava previsto no inciso XXXV do artigo 5º da CF/88.
Em face de tudo quanto foi exposto, os princípios da isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita e a duração razoável do processo figuram como as projeções mais importantes do devido processo legal em sentido formal, como garantias processuais que, na condição de subprincípios, densificam/concretizam o macroprincípio do procedural due process of law, assegurando aos cidadãos o livre acesso ao Poder Judiciário, a fim de proteger seus direitos, mediante julgamento público, fundamentado e imparcial de órgão competente, passível de reforma por órgãos jurisdicionais superiores, lastreado em provas lícitas, dentro de um lapso temporal razoável.
3. A CLÁUSULA PRINCIPIOLÓGICA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SENTIDO SUBSTANCIAL: PONDERAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA E O POSTULADO DA RAZOABILIDADE/PROPORCIONALIDADE
Conforme já referido, o devido processo legal em sua acepção substantiva refere-se ao modo pelo qual a lei, o regulamento, o ato administrativo, a decisão judicial são interpretados e aplicados, de molde a otimizar a busca de uma opção hermenêutica legítima e efetiva, com base nos resultados obtidos pela ponderação principiológica e pelo uso do postulado da razoabilidade/proporcionalidade.
A progressiva substancialização do princípio do devido processo legal é o resultado de um novo tratamento epistemológico, mais consentâneo com com o funcionamento dos sistemas jurídicos contemporâneos, que a doutrina atual denomina como pós-positivismo jurídico. A adoção do modelo pós-positivista de comprrensão do direito processual abre espaço para a valorização dos princípios constitucionais, os quais enunciam direitos fundamentais que passam a incidir e presidir o desenvolvimento das relações processuais.
Neste contexto, sedimenta-se um direito constitucional processual de inequívoca orientação principiológica, estreitando os vínculos entre o constitucionalismo, o processo e o regime democrático. No âmbito de uma democracia, o processo torna-se um espaço ético-político voltado para a realização da justiça e dos valores fundamentais da existência humana, que se consubstanciam nos direitos fundamentais dos cidadãos.
Conforme o magistério de Ada Grinover (1973, p. 12), todo o direito processual tem suas linhas fundamentais traçadas pelo direito constitucional, que fixa a estrutura dos órgãos jurisdicionais, garante a distribuição da justiça e a declaração do direito objetivo, bem como estabelece os princípios retores do processo.
Com efeito, todo o direito processual, que disciplina o exercício de uma das funções fundamentais do Estado, além de ter pressupostos constitucionais – como os demais ramos do direito – é fundamentalmente determinado pela Constituição, em muitos de seus aspectos e institutos característicos, pelo que alguns dos princípios gerais que o informam são, ao menos inicialmente, princípios constitucionais ou seus corolários.
Oportuna também é a lição de José Baracho (1984, p. 129) para quem, como a Constituição sofre influência do sistema político, as orientações ético-políticas recolhidas nos textos constitucionais contribuem para o desenvolvimento e a legitimação do processo nos Estados Democráticos de Direito.
Sendo assim, o processo contemporâneo apresenta-se como instrumento da tutela dos direito fundamentais, que somente é realizada através dos princípios constitucionais, pelo que a Constituição passa a pressupor a existência do processo como veículo de exteriorização dos direitos e garantias da pessoa humana.
Dentro desta mudança paradigmática em favor da constitucionalização das relações processuais, a Teoria do Processo passa por uma profunda reconstrução, figurando o devido processo legal substancial como a via de concretização dos valores e finalidades maiores do sistema jurídico, oferecendo as condições de possibilidade de um consenso racional dos sujeitos processuais sobre as opções hermenêuticas mais justas. Representa, assim, uma exigência de legitimidade do direito processual, pressupondo que o poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais.
Como bem refere Marcelo de Oliveira (2002, p.70), o devido processo legal substancial implica na legítima limitação ao poder estatal, bem como ao poder econômico de particulares, de modo a censurar a legislação ou outro ato normativo que viole os direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito, bem como implica em proclamar a autolimitação do Estado no exercício da própria jurisdição, no sentido de que a promessa de exercê-la será cumprida com as limitações contidas nas demais garantias fundamentais, sempre segundo os padrões democráticos de uma sociedade.
A cláusula princiológica do devido processo legal substancial desemboca na utilização do postulado ou princípio instrumental da razoabilidade/proporcionalidade, como recurso metodológico indispensável para concretização hermenêutica de um direito processual mais legítimo e efetivo, de modo a realizar a noção de justiça mais adequada às vicissitudes da lide.
Como sustenta Luís Barroso (2002, pp. 213-216), o postulado da razoabilidade/proporcionalidade funciona como um parâmetro hermenêutico que orienta como uma norma jurídica deve ser interpretada e aplicada no caso concreto, mormente na hipótese de incidência dos direitos fundamentais no processo, para a melhor realização dos valores e fins do sistema constitucional.
Permite-se, assim, ao Poder Judiciário invalidar atos legislativos, administrativos ou particulares nas seguintes situações: não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado pela norma jurídica (adequação); a medida normativa não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade ou vedação do excesso); e não se manifeste o binômio custo-benefício, pois o que se perde com a medida normativa é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade stricto sensu).
Exemplos de aplicação do postulado da razoabilidade/proporcionalidade não faltam: a) quando, por exemplo, um edital de concurso publico, por absurdo, estabelece uma altura mínima para o candidato a professor universitário, o que talvez se justifique num concurso para a polícia ou forças armadas. Nestes casos, a razoabilidade é o meio de aferição do cumprimento do princípio da isonomia; b) o Supremo Tribunal Federal já declarou inconstitucional uma lei estadual que determinava a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor. Em nome do princípio da defesa do consumidor, o princípio da livre iniciativa foi considerado violado, por ter sido restringido de modo inadequado, desnecessário e, sobretudo, desproporcional, já que o implemento de tal exigência oneraria ainda mais o valor do botijão para o consumidor final; c) quando o Estado brasileiro investe recursos volumosos para sustentar a viagem de um astronauta brasileiro no espaço, a título de concretizar a norma programática do art. 218 da CF/88, que prescreve a promoção e o incentivo à ciência e a tecnologia, fere-se, frontalmente, o princípio da razoabilidade, ante a falta de um retorno mais direto e concreto para a evolução técnico-científica do país; d) o Supremo Tribunal Federal já entendeu ferir o princípio da razoabilidade a cobrança de taxas elevadas pelo poder público, havendo formas menos gravosas aos contribuintes para o custeio dos serviços públicos.
De outro lado, a cláusula princiológica do devido processo legal se coaduna com a utilização do método de ponderação de princípios jurídicos, valorizado pelo pós-positivismo como alternativa hermenêutica para a solução de conflitos entre os direitos fundamentais dos cidadãos.
Com efeito, durante muito tempo, sob a égide de uma visão positivista do Direito, a subsunção se afigurou como a fórmula típica de aplicação normativa, caracterizada por uma operação meramente formal e lógico-dedutiva: identificação da premissa maior (a norma jurídica); a delimitação da premissa menor (os fatos); e a posterior elaboração de um juízo conclusivo (adequação da norma jurídica ao caso concreto). Se esta espécie de raciocínio ainda serve para a aplicação de algumas regras de direito (v.g., art. 40 da CF/88 – aposentadoria compulsória do servidor público que completa 70 anos), revela-se, no entanto, insuficiente para a lidar com o uso hermenêutico dos princípios jurídicos, como fundamentos para a decidibilidade de conflitos.
Decerto, as normas principiológicas consubstanciam valores e fins muitas vezes distintos, apontando para soluções diversas e contraditórias para um mesmo problema. Logo, com a colisão de princípios jurídicos, podem incidir mais de uma norma sobre o mesmo conjunto de fatos, como o que várias premissas maiores disputam a primazia de aplicabilidade a uma premissa menor. A interpretação jurídica contemporânea, na esteira do pós-positivismo, deparou-se, então, com a necessidade de desenvolver técnicas capazes de lidar com a natureza essencialmente dialética da ordem jurídica, ao tutelar interesses potencialmente conflitantes, exigindo um novo instrumental metodológico para aplicação do direito justo: a ponderação.
Com base no magistério de Robert Alexy (2002, p. 86), a ponderação consiste numa técnica jurídica de interpretação e decisão, aplicável a casos difíceis (hard cases) , em relação aos quais a subsunção figura insuficiente, especialmente quando a situação concreta rende ensejo para a aplicação de normas principiológicas que sinalizam soluções diferenciadas.
Sendo assim, o processo cognitivo da ponderação pode ser decomposto em três etapas: identificação das normas pertinentes, seleção dos fatos relevantes e atribuição geral de pesos. Na primeira etapa, cabe ao intérprete detectar no sistema as normas relevantes para a solução do caso concreto, identificando eventuais conflitos entre elas. Ainda neste estágio, os diversos fundamentos normativos são agrupados em função da solução que estejam sugerindo. Por sua vez, na segunda etapa, cabe examinar os fatos e as circunstâncias concretas do caso concreto e sua interação com os elementos normativos, daí a importância assumida pelos fatos e pelas conseqüências práticas da incidência da norma. Enfim, na terceira etapa, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, pois, qual o grupo de normas deve preponderar no caso concreto.
Ao vislumbrar-se a ordem jurídica brasileira, não faltaram exemplos de aplicabilidade do raciocínio ponderativo: a) o debate acerca da relativização da coisa julgada onde se contrapõem o princípio da segurança jurídica e o princípio da realização da justiça; b) a discussão sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, onde se contrapõem princípios como a autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana; c) o debate sobre os princípios da liberdade de expressão versus proteção aos valores éticos e sociais da pessoa ou da família, ao tratar do eventual controle da programação de televisão; d) a polêmica concernente aos princípios da liberdade de expressão e informação versus políticas públicas de proteção da saúde, em torno da restrição da publicidade de cigarro; e) o conflito entre os princípios da liberdade religiosa e proteção da vida, em situações que envolvam a transfusão de sangue para as testemunhas de Jeová, além de outras hipóteses ilustrativas.
A existência de ponderação não priva, contudo, a doutrina e a jurisprudência de buscar parâmetros de maior objetividade para a sua aplicação, até porque não elide, por completo, as avaliações subjetivas e preferências pessoais do hermeneuta (pré-compreensão), ainda que não se admita o exercício indiscriminado e arbitrário da interpretação jurídica (voluntarismo hermenêutico). Com efeito, aponta-se a necessidade do exercício de uma competente argumentação jurídica, para a demonstração adequada do raciocínio desenvolvido e a garantia da legitimidade da opção hermenêutica, adquirindo inegável relevo o art. 93 , IX, CF/88, que trata da exigência de fundamentação das decisões jurídicas.
Não há como negar que, quando uma decisão envolve a técnica ponderativa dos princípios, o dever de motivar torna-se ainda mais premente e necessário, visto que o intérprete percorre um caminho mais longo e tortuoso para chegar à solução. É, portanto, dever do hermeneuta guiar a comunidade jurídica por esta viagem, descrevendo, de modo minudente, as razões que justificam uma dada direção ou um dado sentido para uma interpretação mais justa do direito, pelo a ponderação se qualifica e legitima pela justificação racional das proposições normativas.
Diante do exposto, pode-se depreender que a cláusula principiológica do devido processo legal, no seu sentido substancial, nada mais que é um mecanismo de controle axiológico e teleológico da atuação dos agentes públicos ou mesmo particulares, típico do Estado democrático de direito, de modo a impedir toda restrição ilegítima aos direitos fundamentais dos cidadãos, sem um processo previamente estabelecido e com possibilidade de ampla participação.
Sob esse novo prisma, a cláusula do devido processo legal atinge não só a forma, mas também a substância do ato, pois existe a preocupação de se conceder uma tutela jurisdicional mais justa, porque guiada pela ponderação principiológica e pelo postulado da razoabilidade/proporcionalidade, como idéias jurídicas fundantes da Constituição e decorrentes do respeito aos direitos fundamentais.
Diante da constatação da multifuncionalidade dos princípios jurídicos, devem ser reconhecidas as funções desempenhadas pela cláusula principiológica do devido processo legal no direito processual constitucional brasileiro, em suas acepções formal e substancial.
Como já referido, na qualidade de fonte subsidiária do direito processual, os princípios serviriam como elemento integrador, tendo em vista o preenchimento das lacunas do sistema jurídico, na hipótese de ausência da lei aplicável à espécie típica. Esta concepção revela-se, porém, anacrônica, ante o reconhecimento da normatividade da cláusula principiológica do devido processo legal.
Considerando a eficácia normativa do princípio do due process of law, a interpretação jurídica vem extraindo diversos resultados. Geralmente, o devido processo legal incide através de normas que ordenam os procedimentos. As regras que disciplinam o ajuizamento da ação, a citação do réu, as modalidades de resposta, a atividade probatória, os requisitos da sentença, o processamento dos recursos, etc, todas elas realizam o devido processo legal. No entanto, muitas vezes, o princípio due process of law incide para invalidar normas materiais ou processuais com ele incompatíveis. É utilizado ainda, independentemente da mediação de regras, para ordenar determinado procedimento, sempre que não houver uma ordenação legal, ou ainda quando a regulação daquele procedimento não for apta a realizar a finalidade propugnada pela principiologia do devido processo legal.
Sendo assim, a cláusula principiológica do devido processo legal perde o seu caráter meramente supletivo, impondo uma aplicação obrigatória pelos sujeitos processuais para o deslinde dos conflitos de interesse. O due process of law passa a ser utilizado como fonte primária e imediata de direito, podendo ser aplicado diretamente a todos os casos concretos, seja no aspecto negativo, seja no aspecto negativo.
No que se refere ao primeiro sentido, a eficácia negativa confere aos sujeitos processuais a prerrogativa de questionar a validade de todas as normas jurídicas ou ações que ofendam o due process of law nas seguintes hipóteses: a) violação dos princípios da isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita ou duração razoável do processo; b) concretização de opção hermenêutica que se revele incompatível com as exigências de efetividade e legitimidade da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, por contrariar a justa ponderação principiológica e o postulado da razoabilidade/proporcionalidade.
Por sua vez, a eficácia positiva consiste em reconhecer aos sujeitos processuais a prerrogativa de exigir uma justa prestação estatal (jurisdicional, administrativa, legislativa) ou uma conduta particular aceitável no âmbito dos procedimentos negociais ou falimentares, pela elaboração de norma jurídica que, além de respeitar as garantias constitucionais do processo, que concretize opções hermenêuticas que correspondam à ponderação principiológica e ao melhor uso do postulado da razoabilidade/proporcionalidade na interpretação/aplicação das normas jurídicas.
De outro lado, convém ressaltar que os efeitos jurídicos negativos e positivos decorrentes da cláusula principiológica do devido processo legal atingem não somente as relações estabelecidas entre os agentes públicos e os cidadãos (eficácia vertical dos direitos fundamentais), como também incide sobre os liames mantidos pelos particulares, no campo das relações privadas (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
Decerto, a tradição jurídica, advinda do liberalismo e das Codificações do Século XIX, acarretava uma separação ficcional entre Estado e Sociedade, de modo que a Constituição era o estatuto do Público, e o Código Civil a Constituição do Direito Privado. Neste contexto, os cidadãos teriam direito apenas e tão-somente contra o Estado, o que assegurava à iniciativa privada uma liberdade absoluta, sem que o Estado pudesse interferir nas respectivas esferas individuais.
A afirmação da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas surgiu a partir de construções pretoriana e doutrinária, ganhando força com o fenômeno da constitucionalização do Direito Privado, potencializada, no ordenamento jurídico pátrio, com o advento do Código Civil de 2002/2003, responsável pela positivação de novos princípios jurídicos, tais como a boa-fé objetiva, a função social da propriedade, a lealdade e a solidariedade negocial, todos eles iluminados pela exigência ético-jurídica máxima de um Estado Democrático de Direito - a dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, leciona Gustavo Tepedino (2001, p.22) que o novo paradigma-civil-constitucional tratou de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito privado à luz da Constituição, de maneira a privilegiar os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, a efetividade dos direitos sociais e a materialização da justiça distributiva.
Sendo assim, houve um necessário rompimento com a dicotomia oitocentista, primeiro, com a interferência administrativa do Estado no mundo econômico, e, posteriormente, com as interferências do Poder Judiciário, na coibição dos abusos cometidos na vida privada, a fim de tutelar e efetivar os direitos e garantias fundamentais. A interferência estatal, do ponto de vista do direito material, estendeu-se ao plano processual, de modo que, a cláusula principiológica do devido processo legal, como fonte de prerrogativas da cidadania, não pode ser mais obstaculizado pelo dogma da autonomia privada.
Por outro lado, partindo- se da premissa já assentada no plano da Teoria Geral do Processo, segundo a qual o vocábulo processo é dotado de abertura semântica, englobando as diversas modalidades processuais (jurisdicional, legislativa, administrativa, negocial, societário), deve-se admitir a incidência do devido processo legal no campo das relações privadas.
Ademais, com o reconhecimento da teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais na esfera privada, esta concepção ganha ainda mais força, justificando a utilização do princípio do devido processo legal no âmbito das relações entre os particulares, passando a desempenhar múltiplas funções: cânon interpretativo-integrativo, criação de deveres jurídicos e limitação ao exercício de direitos subjetivos pelos sujeitos privados, tendo em vista o respeito à dignidade da pessoa humana.
Deste modo, resta assim permitido ao juiz não só integrar a vontade das partes, como também impor limitações à liberdade individual e ainda, em certos casos, afastar a aplicação tanto do princípio do pacta sunt servanda, como do princípio da imutabilidade dos negócios jurídicos.
Exemplo ilustrativo é observado no Recurso Extraordinário n. 201.819, que trata da exclusão de um sócio de uma entidade privada sem direito a defesa. Embora a interpretação tradicional sustente que a exclusão do associado de entidade privada responde às regras do estatuto social e da legislação civil em vigor, deve prevalecer, contudo, o entendimento de que as penalidades impostas pela entidade ultrapassam, em muito, a liberdade do direito de associação e, sobretudo, o exercício do direito de defesa. Isto porque o caso aludido transcende a simples liberdade de associar ou de permanecer associado, já que o sócio expulso arcaria com a conseqüência de não participar da gestão coletiva e da arrecadação/ distribuição de direitos autorais.
Resta, portanto, evidenciado que o direito das associações privadas não é absoluto e comporta restrições, em face da incidência dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal de 1988. Sendo assim, as associações privadas têm liberdade para se organizar e estabelecer normas de funcionamento e de relacionamento entre os sócios, desde que respeitem a legislação em vigor, aí incluídos os direitos e garantias fundamentais que defluem do due process of law.
No que se refere ao desempenho de sua função fundamentadora, a cláusula principiológica do devido processo legal figura como a idéia básica que serve de embasamento ao direito positivo, expressando os valores e fins superiores que inspiram a organização do sistema de garantias constitucionais do processo, expressas pelos princípios da isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita e duração razoável do processo.
Neste diapasão, salienta Maria Rosynete Oliveira (1999, pp. 180-181) que, comumente, encontramos nos textos jurídicos brasileiros o atrelamento do princípio do devido processo legal a outro enunciado principiológico, como, por exemplo, devido processo legal e contraditório. Este fato, por vezes justificável, é em sua maioria fruto de conclusões apressadas, já que desprezam a força normativa dos princípios envolvidos, os quais, por si sós, podem justificar resoluções jurídicas. Os princípios do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, e outros, não são corolários, deduções, ou conseqüências do princípio do devido processo legal, mas princípios, que têm um grau de concretização mais elevado e que são chamados a concretizar o devido processo legal; daí chamá-los de subprincípios, e não subespécies do devido processo legal. O devido processo legal, como princípio a ser concretizado assumiria a função de uma idéia diretiva, indicando a direção aos subprincípios e lhes servindo de base. Esta diretiva não tem, contudo, mão única, mas um sentido duplo: o princípio esclarece-se pelas suas concretizações, e estas pela sua união perfeita com o princípio.
Destaca-se ainda a função hermenêutica da cláusula principiológica do devido processo legal, que consiste na capacidade do princípio do due process of law de orientar a correta interpretação e aplicação das regras e demais princípios de um dado sistema jurídico, a fim de que o intérprete escolha, dentre as diversas opções hermenêuticas, aquela que melhor se coadune com as garantias constitucionais do processo (isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita e duração razoável) e com os resultados de uma interpretação ponderada, razoável e proporcional dos direitos fundamentais, otimizando a mais justa aplicação dos princípios constitucionais no caso concreto.
Sendo assim, a cláusula principiológica do devido processo legal preside a compreensão da totalidade do sistema normativo, sendo incorreta a interpretação da norma, quando dela derivar contradição, explícita ou velada, com o due process of law. Quando a norma admitir logicamente mais de uma interpretação, prevalece a que melhor se afine com a cláusula principiológica do devido processo legal . Ademais, quando a norma tiver sido redigida de modo tal que resulte mais extensa ou mais restrita que o princípio, justifica-se a interpretação extensiva ou restritiva, respectivamente, para calibrar o alcance da regra com a principiologia do due process of law.
Ainda no plano hermenêutico, serve também a cláusula principiológica do devido processo legal como limite de atuação do intérprete. Ao mesmo passo em que funciona como vetor de orientação interpretativa, o princípio do due process of law busca limitar o arbítrio do aplicador do direito. Sendo assim, a cláusula principiológica do devido processo legal estabelece marcos axiológicos e teleológicos, dentro das quais o hermeneuta exercitará seu senso do razoável e sua capacidade de fazer a justiça diante de um caso concreto, mormente com os aportes da ponderação principiológica e do postulado da razoabilidade/proporcionalidade.
Ademais, no campo da interpretação do sistema jurídico, pode-se dizer que a cláusula principiológica do devido processo funciona como padrão de legitimidade de uma opção interpretativa. É que o princípio do due process of law, em suas acepções formal e substancial, encerram valores capazes de conferir força de convencimento às decisões jurídicas. Quanto mais o operador do direito procura tornar efetiva a cláusula principiológica do devido processo legal, no deslinde dos litígios, mais legítima tenderá a ser a interpretação e a posterior decisão. Por outro lado, carecerá de legitimidade a decisão que desrespeitar o princípio do due process of law, seja na dimensão das garantias constitucionais do processo (isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita e duração razoável), seja na dimensão material da ponderação principiológica ou na aplicação razoável e proporcional dos direitos fundamentais dos cidadãos.
CONCLUSÃO
Em face do exposto, pode-se sintetizar que:
- o devido processo legal pode ser considerado uma cláusula geral principiológica, prevista pela Constituição, irradiando-se para a disciplina de todas as modalidades de processo (jurisdicional, legislativo, administrativo, negocial), como modelo normativo de inegável inspiração pós-moderna e pós-positivista;
- o devido processo legal comporta duas acepções no mundo ocidental: procedural due process e substantive due process;
- o procedural due process expressa o conjunto de garantias de ordem constitucional, que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, legitimam a própria função jurisdicional;
- o substantive due process refere-se à maneira pela qual a normatividade jurídica é aplicada, de molde a otimizar a busca de uma opção hermenêutica mais legítima e efetiva, com base nos resultados da ponderação principiológica e do uso do postulado da razoabilidade/proporcionalidade;
- as projeções mais relevantes do devido processo legal, em sentido formal, são as garantias processuais que, na condição de subprincípios, densificam/concretizam o macroprincípio do procedural due process of law, com destaque para a isonomia, o contraditório, a ampla defesa, a previsão do juiz natural, a inafastabilidade da jurisdição, a publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, o duplo grau de jurisdição, a proibição do uso de prova ilícita e a duração razoável do processo;
- a cláusula princiológica do devido processo legal, em sentido substancial, desemboca na utilização do postulado ou princípio instrumental da razoabilidade/proporcionalidade, como recurso metodológico indispensável para concretização hermenêutica de um direito processual mais legítimo e efetivo, de modo a realizar a noção de justiça mais adequada às vicissitudes da lide;
- a cláusula princiológica do devido processo legal, em sentido substancial, coaduna-se com a utilização do método de ponderação de princípios jurídicos, valorizado pelo pós-positivismo como alternativa hermenêutica para a solução de conflitos entre os direitos fundamentais dos cidadãos;
- a cláusula do devido processo legal exige não só o respeito à forma, mas também a compatibilidade com a substância do direito em litígio, de modo a conceder uma tutela jurisdicional mais justa, porque guiada pela ponderação principiológica e pelo postulado da razoabilidade/proporcionalidade, como idéias jurídicas fundantes da Constituição e decorrentes da tutela dos direitos fundamentais;
- a constatação da multifuncionalidade dos princípios jurídicos impõe o reconhecimento das funções desempenhadas pela cláusula principiológica do devido processo legal no direito processual constitucional brasileiro, em suas acepções formal e substancial;
- a cláusula principiológica do devido processo legal perde o seu caráter meramente supletivo, impondo uma aplicação obrigatória pelos sujeitos processuais para o deslinde dos conflitos de interesse, como fonte primária e imediata de direito, podendo ser aplicado diretamente a todos os casos concretos, seja no aspecto negativo, seja no aspecto negativo;
- a eficácia negativa confere aos sujeitos processuais a prerrogativa de questionar a validade de todas as normas jurídicas ou ações que ofendam o due process of law nas seguintes hipóteses: a) violação dos princípios da isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita ou duração razoável do processo; b) concretização de opção hermenêutica que se revele incompatível com as exigências de efetividade e legitimidade da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, por contrariar a justa ponderação principiológica e o postulado da razoabilidade/proporcionalidade;
- a eficácia positiva consiste em reconhecer aos sujeitos processuais a prerrogativa de exigir uma justa prestação estatal (jurisdicional, administrativa, legislativa) ou uma conduta particular aceitável no âmbito dos procedimentos negociais ou falimentares, pela elaboração de norma jurídica que, além de respeitar as garantias constitucionais do processo, que concretize opções hermenêuticas que correspondam à ponderação principiológica e ao melhor uso do postulado da razoabilidade/proporcionalidade na interpretação/aplicação das normas jurídicas;
- os efeitos jurídicos negativos e positivos decorrentes da cláusula principiológica do devido processo legal atingem não somente as relações estabelecidas entre os agentes públicos e os cidadãos (eficácia vertical dos direitos fundamentais), como também incide sobre os liames mantidos pelos particulares, no campo das relações privadas (eficácia horizontal dos direitos fundamentais);
- a função fundamentadora concebe a cláusula principiológica do devido processo legal como a idéia básica que serve de embasamento ao direito positivo, expressando os valores e fins superiores que inspiram a organização do sistema de garantias constitucionais do processo, expressas pelos princípios da isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita e duração razoável;
- a função hermenêutica da cláusula principiológica do devido processo legal consiste na capacidade do princípio do due process of law de orientar e legitimar a correta interpretação e aplicação das regras e demais princípios de um dado sistema jurídico, a fim de que o intérprete escolha, dentre as diversas opções hermenêuticas, aquela que melhor se coadune com as garantias constitucionais do processo (isonomia, contraditório, ampla defesa, previsão do juiz natural, inafastabilidade da jurisdição, publicidade dos atos processuais, a motivação das decisões judiciais, duplo grau de jurisdição, proibição do uso de prova ilícita e duração razoável) e com os resultados de uma interpretação ponderada, razoável e proporcional dos direitos fundamentais, otimizando a mais justa aplicação dos princípios constitucionais no caso concreto;
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ELEMENTOS PARA UMA CULTURA JURÍDICA PÓS-MODERNA
Doutorando em Direito Público (UFBA). Mestre em Direito Privado e Econômico (UFBA). Professor da Faculdade de Direito da UFBA, da Faculdade Baiana de Direito e do Curso Juspodivm. Professor-visitante da Università degli Studi di Roma. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-Ba. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br
Que obra-prima, o homem! Como é nobre a sua razão! Como são infinitas as suas faculdades! Como são expressivas e admiráveis a sua forma e o seu movimento! Como pelos seus atos se parece com um anjo! Como pela inteligência se parece com um deus! É a beleza do mundo! O tipo supremo dos seres criados!
Shakespeare
Quase nada há de justo ou injusto que não mude de natureza com a mudança de clima. Três graus de altura popular revolucionam toda a jurisprudência. Um meridiano decide sobre a verdade. Após alguns anos de posse, alteram-se leis fundamentais. O Direito tem as suas épocas. Divertida justiça esta que um rio ou uma montanha baliza. Verdade aquém, erro além Pirineus.
Pascal
1. Fundamentos do projeto da modernidade
Desde a época do renascimento, a humanidade já havia sido guindada ao patamar de centro do universo. Típica da nova perspectiva era a visão de Francis Bacon, segundo a qual os homens poderiam desvendar os segredos da realidade, para, então, dominar a natureza. Posteriormente, René Descartes lançou as bases filosóficas do edifício moderno, definindo a essência humana como uma substância pensante (cogito, ergo sum) e o ser humano como um sujeito racional autônomo. Na mesma senda, Isaac Newton conferiu à modernidade o seu arcabouço científico ao descrever o mundo físico como uma máquina, cujas leis imutáveis de funcionamento poderiam ser apreendidas pela mente humana. Na seara político-social, despontou o pensamento de John Locke, vislumbrando a relação contratual entre governantes e governados, em detrimento do absolutismo, e a supremacia dos direitos naturais perante os governos tirânicos.
Abeberando-se neste rico manancial de idéias, coube ao o movimento iluminista, no século XVIII, consolidar o multifacético projeto da modernidade, Diderot, Voltaire, Rousseau e Montesquieu inaugurariam, de modo triunfal, a idade da razão. Sob a influência do iluminismo, Emanuel Kant complementaria o ideário moderno, ao enfatizar o papel ativo da mente no processo de conhecimento. Para Kant, o intelecto sistematizaria os dados brutos oferecidos pelos órgãos sensoriais através de categorias inatas, como a noções de espaço e tempo. Nessa perspectiva, o “eu pensante”, ao desencadear suas potencialidades cognitivas, afigurava-se como o criador do próprio mundo a ser conhecido. A pretensão transcendental de Kant supunha, assim, que a cultura e a ética refletiriam padrões universalmente racionais e humanos, submetendo-se os deveres ao princípio supremo da razão prática – o imperativo categórico. Ao conferir posição privilegiada ao sujeito do conhecimento, Kant elevou o respeito a pessoa humana como um valor ético absoluto. O sujeito de kantiano tornava-se capaz de sair da menoridade e ser protagonista da história.
O programa moderno estava embasado no desenvolvimento implacável das ciências objetivas, das bases universalistas da ética e de uma arte autônoma. Seriam, então, libertadas as forças cognitivas acumuladas, tendo em vista a organização racional das condições de vida em sociedade. Os proponentes da modernidade cultivavam ainda a expectativa de que as artes e as ciências não somente aperfeiçoariam o controle das forças da natureza, como também a compreensão do ser e do mundo, o progresso moral, a justiça nas instituições sociais e até mesmo a felicidade humana.
Não é outro o entendimento de Alain Touraine (1994, p. 9):
A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o que repousa essa correspondência de uma cultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores religiosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente, que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade.
Nas suas conotações mais positivas, o conceito de modernidade indica uma formação social que multiplicava sua capacidade produtiva, pelo aproveitamento mais eficaz dos recursos humanos e materiais, graças ao desenvolvimento técnico e científico, de modo que as necessidades sociais pudessem ser respondidas, com o uso mais rigoroso e sistemático da razão.
A modernidade caracterizava-se pela forma participativa das tomadas de decisões na vida social, valorizando o método democrático e as liberdades individuais. O objetivo da sociedade moderna era oferecer uma vida digna, na qual cada um possa realizar sua personalidade, abandonando as constrições de autoridades externas e ingressando na plenitude expressiva da própria subjetividade.
A realização dos objetivos do projeto da modernidade seria garantido, no plano histórico, pelo equilíbrio entre os vetores societários de regulação e emancipação. As forças regulatórias englobariam as instâncias de controle e heteronomia. De outro lado, as forças emancipatórias expressariam as alternativas de expansão da personalidade humana, oportunizando rupturas, descontinuidades e transformações.
Neste sentido, discorre Boaventura Santos (1995, p.77)
O projecto sócio-cultural da modernidade é um projecto muito rico, capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e sujeito a desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois pilares fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. São pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três princípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.
O programa da modernidade fundar-se-ia na estabilidade dos referidos pilares, assegurada pela correlação existente entre os princípios regulatórios e as lógicas emancipatórias. Sendo assim, a racionalidade ético-prática, que rege o direito, seria relacionada ao princípio do Estado, uma vez que o Estado moderno era concebido como o detentor do monopólio de produção e aplicação das normas jurídicas. A racionalidade cognitivo-instrumental, por seu turno, seria alinhada ao princípio do mercado, porquanto a ciência e a técnica afiguravam-se como as molas mestras da expansão do sistema capitalista.
Com efeito, no plano gnoseológico, o projeto da modernidade trouxe a suposição de que o conhecimento seria preciso, objetivo e bom. Preciso, pois, sob o escrutínio da razão tornava-se possível compreender a ordem imanente do universo; objetivo, porquanto o modernista se colocava como observador imparcial do mundo, situado fora do fluxo da história; bom, pois o otimismo moderno conduzia à crença de que o progresso seria inevitável e de que a ciência capacitaria o ser humano a libertar-se de sua vulnerabilidade à natureza e a todo condicionamento social.
O cerne do programa moderno era, indubitavelmente, a confiança na capacidade racional do ser humano. Os modernos atribuiam à razão papel central no processo cognitivo. A razão moderna compreende mais do que simplesmente uma faculdade humana. O conceito moderno de razão remetia à assertiva de que uma ordem e uma estrutura fundamentais são inerentes ao conjunto da realidade. O programa moderno se alicerçava na premissa de que a correspondência entre a tessitura da realidade e a estrutura da mente habilitaria esta última a discernir a ordem imanente do mundo exterior.
A idéia de uma modernidade denotava, assim, o triunfo de uma razão redentora, que se projetaria nos diversos setores da atividade humana. Esta razão deflagraria a secularização do conhecimento, conforme os arquétipos da física, geometria e matemática. Viabilizaria a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, concebida como a única forma válida de saber. Potencializaria, através do desenvolvimento científico, o controle das forças adversas da natureza, retirando o ser humano do reino das necessidades. Permitiria ao homem construir o seu destino, livre do jugo da tradição, da tirania, da autoridade e da sanção religiosa.
Neste compasso, ensina João Petrini (2003, p.27):
O projeto da modernidade nasceu para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte, com total autonomia de qualquer instância superior, construindo-se nos termos da vida própria lógica interna destas. O desenvolvimento das ciências deveria permitir o domínio da natureza , respondendo progressivamente às necessidades dos homens e ampliando, portanto, a esfera da liberdade. A racionalidade desenvolvida nas ciências exatas e nas ciências naturais seria aplicada também à elaboração de formas racionais de organização da sociedade, proporcionando a emancipação, a libertação da escassez e das calamidades naturais. Esse processo de domínio, por parte da razão cartesiana, de todas as esferas da realidade humana e social, era considerado irreversível e levaria à libertação da irracionalidade dos mitos, das superstições, das religiões.
2. Os elementos da modernidade jurídica
O programa moderno abria margem para a emergência do paradigma liberal-burguês na esfera jurídica. O conceito de Estado de Direito é, ainda hoje, a pedra angular para o entendimento da modernidade jurídica. Surgido na dinâmica das revoluções burguesas (Revolução gloriosa, Independência norte-americana, Revolução francesa), o Estado de Direito sintetiza um duplo e convergente processo de estatização do Direito e jurisdicização do Estado. Esta nova forma de organização estatal inaugura um padrão histórico específico de relacionamento entre o sistema político e a sociedade civil. Esta relação é intermediada por um ordenamento jurídico que delimita os espaços político e societal. A ordem jurídica acaba por separar a esfera pública do setor privado, os atos de império dos atos de gestão, o interesse coletivo das aspirações individuais.
O Estado de Direito apresenta, como traços marcantes de sua conformação histórica, os princípios da soberania nacional, da independência dos poderes e da supremacia constitucional. O princípio da separação dos poderes, técnica destinada a conter o absolutismo, atribui a titularidade da função legislativa a parlamentos compostos pelos representantes da nação, restringe o campo de atuação do Poder Executivo aos limites estritos das normas legais e confere ao Poder Judiciário a competência para julgar e dirimir conflitos, neutralizando-o politicamente. O Estado submete-se ao primado da legalidade. A Lei é concebida como uma norma abstrata e genérica emanada do parlamento, segundo um processo previsto pela constituição. A Carta Magna, na acepção liberal, apresenta-se como uma ordenação sistemática da comunidade política, plasmada em regra num documento escrito, mediante o qual se estrutura o poder político e se asseguram os direitos fundamentais.
Conforme se depreende, a idéia moderna de que os homens encontravam-se aptos a delinear um projeto racional informa as definições clássicas de Lei e Constituição. As normas legais afiguram-se como instrumentos de uma razão planificante, capaz de engendrar a codificação do ordenamento jurídico e a regulamentação pormenorizada dos problemas sociais. A Constituição, produto de uma razão imanente e universal que organiza o mundo, cristaliza, em última análise, o pacto fundador de toda a sociedade civil.
O fenômeno da positivação é, pois, expressão palmar da modernidade jurídica, permitindo a compreensão do Direito como um conjunto de normas postas. Ocorrido, em larga medida, a partir século XIX, corresponde à legitimidade legal-burocrática preconizada por Max Weber, porquanto fundada em ritos e mecanismos de natureza formal. A positivação desponta como um no processo de filtragem, mediante procedimentos decisórios, das valorações e expectativas comportamentais presentes na sociedade, que são, assim, convertidas em normas dotadas de validez jurídica. A Lei, resultado de um conjunto de atos e procedimentos formais (iniciativa, discussão, quorum, deliberação) torna-se, destarte, a manifestação cristalina do Direito. Daí advém a identificação moderna entre Direito e Lei, restringindo o âmbito da experiência jurídica.
A análise global da conjuntura da época possibilita o entendimento do sentido desta idolatria à lei. O apego excessivo à norma legal refletia a postura conservadora de uma classe ascendente. A burguesia ao encampar o poder político, passou a utilizar a aparelhagem jurídica em conformidade com seus interesses. Se a utopia jusnaturalista impulsionou a revolução, a ideologia legalista legitimou a preservação do statu quo pelo argumento de que o conjunto de leis corporificava o justo pleno, cristalizando formalmente os princípios perenes do direito natural.
Além disto, as demandas do industrialismo, a celeridade das transformações econômicas exigiam um instrumental jurídico mais dinâmico e maleável. Em contraste com o processo de lenta formação das normas consuetudinárias, a Lei se afigurava como um instrumento expedito, pronto a disciplinar as novas situações de uma realidade cambiante. Ocorreu a institucionalização da mutabilidade do direito, isto é, a ordem jurídica tornou-se contingencial e manipulável conforme as circunstâncias.
O fastígio do princípio da separação de poderes, técnica de salvaguarda política e garantia das liberdades individuais, foi outro fator preponderante. Na concepção moderna, o julgador, ao interpretar a lei, deveria ater-se à literalidade do texto legal, para que não invadisse a seara do poder legislativo. O magistrado deveria restringe-se à vontade da lei - voluntas legislatoris. A aplicação do direito seria amparada no dogma da subsunção, pelo que o raciocínio jurídico consistiria na estruturação de um silogismo, envolvendo uma premissa maior (a diretiva normativa genérica) e uma premissa menor (o caso concreto).
Ressalte-se ainda que teorização jurídica da era moderna concebia o Direito como um ordenamento dessacralizado e racional. O sistema jurídico jurídico passou a ser entendido como um sistema fechado, axiomatizado e hierarquizado de normas. Desta concepção moderna defluiam as exigências de acabamento, plenitude, unicidade e coesão do direito. Nesta perspectiva sistêmica, são negadas as existências de lacunas e de antinomias normativas.
3. O colapso do ideário moderno
Um grande debate envolve o tema da modernidade, problematizando seus fundamentos, conquistas e perspectivas. Para muitos estudiosos, o programa moderno, enquanto realizava o seu desiderato de constituir sujeitos autônomos e sociedades racionalmente organizadas, também desenvolvia os fermentos e as forças de sua própria dissolução.
Neste diapasão, acentua Marshall Berman (1986. p.15):
A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia; nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une toda a espécie humana. Porém é uma unidade paradoxal, uma unidade da desunidade; ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, tudo que é sólido desmancha no ar.
O desvios e excessos do projeto da modernidade abrem margem para o aprofundamento de interpretações críticas, aptas a vislumbrar a feição repressiva do racionalismo ocidental. Deste modo, o pensamento contemporâneo sinaliza para uma transição paradigmática do programa moderno a uma cultura pós-moderna, cujos caracteres passam a ser delineados com o colapso da idade da razão.
Com efeito, no decorrer de seu transcurso histórico, o projeto da modernidade entrou em colapso. A vocação maximalista dos pilares regulatório e emancipatório, bem como dos princípios e lógicas internas inviabilizou o cumprimento da totalidade de suas promessas. Ocorreu, em determinados momentos, a expansão demasiada do espaço social ocupado pelo mercado, a maximização da racionalidade científica e, de um modo geral, o desenvolvimento exacerbado do vetor da regulação ante o vetor da emancipação. O pilar emancipatório assumiu a condição de roupagem cultural das forças de controle e heteronomia, comprometendo o equilíbrio tão almejado entre os pilares da modernos.
O programa da modernidade dissolveu-se num processo de racionalização da sociedade, que acabou por vincular a razão às exigências do poder político e à lógica específica do desenvolvimento capitalista. O conhecimento científico da realidade natural e social, entendido como meio de emancipação do ser humano, é submetido às injunções do poder vigente.
Denuncia-se o entrelaçamento das formações discursivas com as relações de poder. Com o aparecimento de uma razão tecnocrática, o saber se torna o serviçal e corolário lógico do poder. O discurso, mormente o científico, é convertido num eficiente instrumento de domínio. O discurso não é mais simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que todos querem se apoderar.
Neste sentido, adverte Michel Foucault (2002, p.8):
Eis a hipótese que gostaria de apresentar esta noite, para fixar o lugar – ou talvez o teatro muito provisório – do trabalho que faço: suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
Sendo assim, a razão de matriz iluminista se banalizou, restringindo seu horizonte e delimitando seu campo de indagação aos interesses do poder. Favoreceu o progresso técnico e o crescimento econômico, mas engendrou problemas sociais. A racionalidade moderna não mais atendeu às exigências originárias do homem (liberdade, justiça, verdade e felicidade), mas, do contrário, sucumbiu às exigências do mercado.
Salientando este aspecto, sustenta Max Horkheimer (1976, p.27-32):
Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. (...) A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la. (... ) É como se o próprio pensamento se tivesse reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma, se tivesse se tornado uma parte e uma parcela de produção.
Conquanto tenha desencadeado o progresso material da sociedade moderna, o racionalismo do ocidente acabou promovendo o cerceamento desintegrador da condição humana, a perda da liberdade individual, o esvaziamento ético e a formação de um sujeito egoísta, direcionado, precipuamente, ao ganho econômico. Os indivíduos foram convertidos a meros receptáculos de estratégias de produção, enquanto força de trabalho (alienação); de técnicas de consumo, enquanto consumidores (coisificação); e de mecanismos de dominação política, enquanto cidadãos da democracia de massas (massificação). A alienação, a coisificação e a massificação se tornaram patologias de uma modernidade em colapso.
Os pressupostos gnoseológicos da modernidade foram também solapados. Não mais prevalece mais a suposição de que o conhecimento é bom, objetivo e exato. O otimismo moderno no progresso científico é substituído pelo ceticismo no tocante à capacidade da ciência resolver os grandes problemas mundiais, mormente os ecológicos. Não se aceita a crença na plena objetividade do conhecimento. O mundo não é um simples dado que está “lá fora” à espera de ser descoberto e conhecido. A aproximação entre o sujeito e o objeto é uma tendência presente em todas modalidades de conhecimento científico. O trabalho do cientista, como o de qualquer ser humano, é condicionado pela história e pela cultura. A verdade brota de uma comunidade específica. Assim, o que quer que aceitemos como verdade, e até mesmo o modo como a vemos, depende da comunidade da qual participamos. Este relativismo se estende para além de nossas percepções da verdade e atinge sua essência: não existe verdade absoluta e universal. A verdade é sempre fruto de uma interpretação.
Eis o que afirma Edgar Morin (186, pp.197-198):
A ciência derrubou as verdades reveladas, as verdades absolutas. Do ponto de vista científico, essas verdades são ilusões. Pensou-se que a ciência substituía essas verdades falsas por verdades verdadeiras. Com efeito, ela fundamenta suas teorias sobre dados verificados, reverificados, sempre reverificáveis. Contudo, a história das ciências mostra-nos que as teorias científicas são mutáveis, isto é, sua verdade é temporária. A retomada dos dados desprezados, o aparecimento de novos dados graças aos progressos nas técnicas de observação /experimentação (...) destroem as teorias que se tornaram inadequadas e exigem outras, novas.
Decerto, a epistemologia contemporânea, através de uma grande plêiade de pensadores, vem fortalecendo a constatação de que as afirmações científicas são probabilísticas, porquanto se revelam submetidas a incertezas. Com a emergência da geometria não-euclidiana, da física quântica e da teoria da relatividade , instaurou-se a crise da ciência moderna, abalando os alicerces do positivismo científico: a certeza, o distanciamento sujeito-objeto e a neutralidade valorativa.
Neste compasso, Marilena Chauí (1984, 213-215), com base em Karl Popper, afirma que a ciência não é um sistema de enunciados certos ou bem estabelecidos, nem um sistema que avança constantemente em direção a um estado final. Deste modo, o velho ideal científico da episteme – do conhecimento absolutamente certo, demonstrável – mostrou ser um ídolo. A exigência da objetividade científica, segundo a autora, torna inevitável que todo enunciado científico permaneça provisório para sempre. Ele, com efeito, pode ser corroborado, mas toda corroboração é relativa a outros enunciados que, novamente, são provisórios. Assim, o valor de uma teoria não seria medido por sua verdade, mas pela possibilidade de ser falsa. A falseabilidade figuraria como o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a idéia de progresso científico, visto que a mesma teoria seria corrigida pelos fatos novos que a falsificam.
De outro lado, conforme assinala Stanley Grenz (1997, p.90), coube a Thomas Kuhn demonstrar que a ciência é um fenômeno dinâmico, vale dizer um construto cultural. A ocorrência das revoluções científicas revelaria que a ciência não deve ser vislumbrada como uma compilação de verdades universais objetivas. Para Thomas Kuhn, o progresso científico seria marcado por revoluções paradigmáticas. Com efeito, nos períodos de normalidade, o paradigma, visão de mundo expressa numa teoria, serviria para auxiliar os cientistas na resolução de seus problemas, sendo, posteriormente, substituído por outro paradigma, quando pendentes questões não devidamente respondidas pelo modelo científico anterior. Neste sentido, a obra de Kuhn leva ao reconhecimento de que os fundamentos do discurso científico e da própria verdade científica, são, em última análise, sociais. A ciência não se embasa numa observação neutra de dados, conforme propõe a teoria moderna. De acordo com o novo entendimento, o conhecimento científico não é uma compilação de verdades universais objetivas, mas um conjunto de investigações histórico-condicionadas, com amparo em comunidades especificas.
Outrossim, rompe-se com os limites da razão moderna para congregar valores e vivências pessoais. A racionalidade é inserida no processo comunicativo. A verdade resulta do diálogo entre atores sociais. Esta nova razão brota da intersubjetividade do cotidiano, operando numa tríplice dimensão. A racionalidade comunicativa viabiliza não só a relação cognitiva do sujeito com as coisas (esfera do ser), como também contempla os valores (esfera do dever ser), sentimentos e emoções (esfera das vivências pessoais).
Trata-se, pois, de uma razão dialógica, espontânea e processual: as proposições racionais são aquelas validadas num processo argumentativo, em que se aufere o consenso através do cotejo entre provas e argumentações. A racionalidade adere aos procedimentos pelos quais os protagonistas de uma relação comunicativa apresentam seus argumentos, com vistas à persuasão dos interlocutores.
4. Caracteres da cultura jurídica pós-moderna
As metanarrativas da modernidade iluminista, carregadas de um otimismo antropocêntrico, vislumbravam o advento de sociedades governadas pela racionalidade, encaminhadas para um estágio cada vez mais avançado de progresso técnico-científico e de desenvolvimento social.
Estas grandes visões modernas, contudo, esvaziaram-se e perderam, gradativamente, a credibilidade. Em seu transcurso histórico, o programa moderno não logrou concretizar seus ideais emancipatórios. Verificou-se que a proposta de racionalização da sociedade ocidental acabou por gerar profundos desequilíbrios entre os atores sociais, comprometendo a realização de uma subjetividade plenamente autônoma.
Nesta esteira, sublinha Paulo Rouanet (1993, pp.11-24):
No Brasil e no mundo, o projeto civilizatório da modernidade entrou em colapso. (...) Trata-se de uma rejeição dos próprios princípios, de uma recusa dos valores civilizatórios propostos pela modernidade. Como a civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no horizonte, estamos vivendo, literalmente, num vácuo civilizatório. Há um nome para isso: barbárie. (...) Agora não se tratava mais da impostura deliberada do clero, mas da falsa consciência induzida pela ação ideologizante da família, da escola e da imprensa, e mais radicalmente ainda, pela eficácia mistificadora da própria realidade – o fetichismo da mercadoria. (...) Quando a ciência se transforma em mito, quando surgem novos mitos e ressurgem mitos antiqüíssimos, quando a desrazão tem a seu dispor toda a parafernália da mídia moderna – quando tudo isso conspira contra a razão livre -, não é muito provável que o ideal kantiano da maioridade venha a prevalecer.
Com a crise da modernidade, muitos estudiosos referiram a emergência de um novo paradigma de compreensão do mundo – a pós-modernidade. A perspectiva pós-moderna passou a indicar a falência das promessas modernas de liberdade, de igualdade e de progresso acessíveis a todos. A desconfiança de todo discurso unificante é o marco característico do pensamento pós-moderno. A realidade social, dentro da perspectiva pós-moderna, não existe como totalidade, mas se revela fragmentada, multifacetada, fluida e plural.
O advento da pós-modernidade também se refletiu no direito do ocidente, descortinando profundas transformações nos modos de conhecer, organizar e realizar as instituições jurídicas.
Sobre as repercussões do paradigma pós-moderno no fenômeno jurídico, discorre Cláudia Marques (2002, p.155):
Com o advento da sociedade de consumo massificada e seu individualismo crescente nasce também uma crise sociológica, denominada por muitos de pós-moderna. Os chamados tempos pós-modernos são um desafio para o direito. Tempos de ceticismo quanto à capacidade da ciência do direito dar respostas adequadas e gerais para aos problemas que perturbam a sociedade atual e modificam-se com uma velocidade assustadora. Tempos de valorização dos serviços, do lazer, do abstrato e do transitório, que acabam por decretar a insuficiência do modelo contratual tradicional do direito civil, que acabam por forçar a evolução dos conceitos do direito, a propor uma nova jurisprudência dos valores, uma nova visão dos princípios do direito civil, agora muito mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos fundamentais do cidadãos. Para alguns o pós-modernismo é uma crise de deconstrução, de fragmentação, de indeterminação à procura de uma nova racionalidade, de desregulamentação e de deslegitimação de nossas instituições, de desdogmatização do direito; para outros, é um fenômeno de pluralismo e relativismo cultural arrebatador a influenciar o direito.
Partindo da presente descrição, torna-se possível divisar os elementos fundamentais da cultura jurídica pós-moderna, podendo mencionar o delineamento de um direito plural, reflexivo, prospectivo, discursivo e relativo.
O fenômeno jurídico pós-moderno é cada vez mais plural. Este pluralismo se manifesta com a implosão dos sistemas normativos genéricos e o conseqüente surgimento dos microssistemas jurídicos, como o direito do consumidor. Este fenômeno de descodificação, verificável especialmente no direito privado tradicional, abre espaço para que uma multiplicidade de fontes legislativas regule os mesmos comportamentos sociais.
Por outro lado, o pluralismo se traduz no surgimento de interesses difusos, que transcendem às esferas dos indivíduos para alcançar, indistintamente, toda a comunidade jurídica. Estes interesses difusos são marcados pela indeterminação dos sujeitos, a indivisibilidade de seu objeto, a conflituosidade permanente e a mutação no tempo e espaço, diferindo da estrutura dos direitos subjetivos individuais, prevalentes dentro da modernidade jurídica.
O fenômeno jurídico pós-moderno assume, também, um caráter reflexivo. O direito moderno figurava como um centro normativo diretor, que, mediante o estabelecimento de pautas comportamentais, plasmava condutas e implementa um projeto global de organização e regulação social. Na pós-modernidade, entretanto, o direito passa a espelhar as demandas da coexistência societária. Sedimenta-se a consciência de que o direito deve ser entendido como um sistema aberto, suscetível aos influxos fáticos e axiológicos.
Corroborando esta perspectiva, sustenta Miguel Reale (1994,p.74):
Sendo a experiência jurídica uma das modalidades da experiência histórico-cultural, compreende-se que a implicação polar fato-valor se resolve, ao meu ver, num processo normativo de natureza integrante, cada norma ou conjunto de normas representando, em dado momento histórico e em função de dadas circunstâncias, a compreensão operacional compatível com a incidência de certos valores sobre os fatos múltiplos que condicionam a formação dos modelos jurídicos e sua aplicação.
Como se depreende, não se concebe mais o ordenamento jurídico como um sistema hermético, mas como uma ordem permeável aos valores e aos fatos da realidade cambiante. Daí decorre a compreensão do ordenamento jurídico como um fenômeno dinâmico e, pois, inserido na própria historicidade da vida humana.
O direito pós-moderno é, igualmente, prospectivo. A própria dinamicidade do fenômeno jurídico exige do legislador a elaboração de diplomas legais marcados pela textura aberta. A inserção de princípios jurídicos em cláusulas gerais e normas-objetivo - fórmulas propositadamente genéricas, indeterminadas e contingenciais - revela a preocupação de conferir a necessária flexibilidade aos modelos normativos, a fim de possa adaptá-lo aos novos tempos.
Apropriada é a lição de Gustavo Tepedino (2002, p.21):
Se o século XX foi identificado pelos historiadores como a Era dos Direitos, à ciência jurídica resta uma sensação incômoda, ao constatar sua incapacidade de conferir plena eficácia ao numeroso rol de direitos conquistados. Volta-se a ciência jurídica à busca de técnicas legislativas que possam assegurar uma maior efetividade aos critérios hermenêuticos. Nesta direção, parece indispensável, embora não suficiente, a definição de princípios de tutela da pessoa humana, como tem ocorrido de maneira superabundante nas diretivas européias e em textos constitucionais, bem como sua transposição na legislação infraconstitucional. O legislador percebe a necessidade de definir modelos de conduta (standards) delineados à luz de princípios que vinculem o intérprete, seja nas situações jurídicas típicas, seja nas situações não previstas pelo ordenamento. Daqui a necessidade de descrever nos textos normativos (e particularmente nos novos códigos) os cânones hermenêuticos e as prioridades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger, ao lado de normas que permitem, do ponto de vista de sua estrutura e função, a necessária comunhão entre o preceito normativo e as circunstâncias do caso concreto.
O fenômeno jurídico pós-moderno passa a valorizar a dimensão discursivo-comunicativa. Entende-se que o direito é uma manifestação da linguagem humana. Logo, o conhecimento e a realização do ordenamento jurídico exigem o uso apropriado dos instrumentos lingüísticos da semiótica ou semiologia. Torna-se, cada vez mais plausível, o entendimento de que os juristas devem procurar as significações do direito no contexto de interações comunicativas. Deste modo, a linguagem se afigura como a condição de exterioridade dos sentidos incrustados na experiência jurídica.
Enfatizando a relevância da linguagem jurídica, asseveram Edmundo Arruda e Marcus Fabiano (2002, pp.326-327):
Quando qualificamos como complexa a atividade interpretativa apenas salientamos, na mobilização dessas múltiplas faculdades psíquicas, o acoplamento de estados interiores ao mundo externo pela via do principal instrumento de mediação: a linguagem. (...) A linguagem, portanto, funda e constitui o mundo. Por isso mesmo, a interpretação não se reduz a uma atividade passiva. Não somos o mero receptáculo em estados interiores das impressões do mundo exterior. O mundo é feito por nós quando nos apropriamos dele interpretativamente. Nessa mediação lingüística da compreensão, o mundo é por nós transformado, constantemente desfeito e refeito. Mas nem todas as linguagens são iguais. Existem certas linguagens dotadas da capacidade de mobilizar grandes poderes sociais, como é o caso do direito. Tais linguagens-poderes imprimem novas condições de possibilidade à vivência do e no mundo. Quem por ofício manipula essas linguagens na sua lida quotidiana recebe então uma responsabilidade adicional: a de fazer não só o seu próprio mundo, mas também o daqueles onde muitos outros podem viver.
Outrossim, a teoria e a prática do direito passam a enfatizar o estabelecimento das condições de decidibilidade dos conflitos, potencializando o uso de técnicas persuasivas. O raciocínio jurídico, no âmbito de um processo comunicativo, não se resume a uma mera operação lógico-formal, mas concatena fórmulas axiológicas de consenso, como os princípios. O processo argumentativo não se respalda nas evidências, mas, isto sim, em juízos de valor. A retórica assume, nesse contexto, papel primordial, enquanto processo argumentativo que, ao articular discursivamente valores, convence a comunidade de que uma interpretação jurídica deve prevalecer.
Ademais, o direito pós-moderno é relativo. Isto porque não se pode conceber verdades jurídicas absolutas, mas sempre dados relativos e provisórios. Na pós-modernidade jurídica, marcada pela constelação de valores e pelos fundamentos lingüísticos, qualquer assertiva desponta como uma forma de interpretação. O relativismo pós-moderno oportuniza a consolidação de um saber hermenêutico.
Esta virada em direção à racionalidade hermenêutica é referida por Andrei Marmor (2000, p.9):
A interpretação tornou-se um dos principais paradigmas intelectuais dos estudos jurídicos nos últimos quinze anos. Assim como o interesse pelas normas na década de 1960 e pelos princípios jurídicos na de 1970, boa parte da teorização da última década foi edificada em torno do conceito de interpretação. Em um aspecto importante, porém, a interpretação é um paradigma mais ambicioso: não se trata apenas de um tema no qual os filósofos do Direito estão interessados mas, segundo alguns filósofos muito influentes, a interpretação é também um método geral, uma metateoria da teoria do direito.
Sob o influxo do pensamento pós-positivista, cristaliza-se um novo modelo interpretativo que impõe uma valorização da linguagem e dos princípios jurídicos. Entende-se que o ato de interpretar e aplicar o direito envolve o recurso permanente a instâncias intersubjetivas de valoração. O raciocínio jurídico congrega valores, ainda que fluidos e mutadiços, porquanto o direito se revela como um objeto cultural, cujo sentido é socialmente compartilhado. A hermenêutica jurídica dirige-se à busca de uma dinâmica voluntas legis, verificando a finalidade da norma em face do convívio em sociedade.
Deste modo, o relativismo potencializa uma hermenêutica jurídica construtiva, voltada para o implemento da justiça social. Este novo paradigma hermenêutico torna-se capaz de promover a tutela e inclusão de grupos hipossuficientes, garantindo a efetividade dos direitos consagrados no direito positivo, mormente nos microssistemas jurídicos de índole protetiva.
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